A Convenção de Haia sobre os aspectos civis do sequestro internacional de crianças de 1980 trouxe mecanismos juridicos para facilitar casos desta natureza, porém, muitos desafios ainda persistem no Brasil em relação a sua efetivação pelo Estado Brasileiro, que apresenta dificuldade em aplicar a regra de competência internacional prevista na Convenção para o julgamento dos casos dela provenientes.
Ou seja, ajustiça brasileira assume o direito de julgar questões sobre disputas da guarda da criança, quando esta criança está no Brasil, ainda que “ilicitamente”.
Esta postura causa grande demora na solução de casos de pedidos de retorno de crianças ao local de sua residência habitual, indo de encontro aos objetivos da Convenção , que busca acelerar o cumprimento de casos desta natureza e supostamente, viola o princípio do “melhor interesse da criança”, como no exemplificatico caso do menino Sean Goldman (2009).
Apesar de o Brasil vir gradativamente modificando seu entendimento, ainda será necessário uma profunda alteração no princípios que regram o tema “competência nacional” para que haja efetivação dos procedimentos de urgência que agilizem o processo judicial para o imediato retorno da criança ao seu país de residencia habitual.
O caso Sean Goldman e o conflito de competência.
No Brasil, um caso específico ganhou grandes proporções midiáticas devido à uma Batalha Judicial que perdurou aproximadamente 05 anos.
O caso aconteceu entre os anos de 2004 e 2009, e trouxe à tona a problemática envolvendo o conflito de competência entre a justiça federal e estadual relativa ao sequestro internacional de crianças e a aplicação da Convenção de Haia de 1980.
Em um breve resumo do caso, David Goldman, cidadão norte-americano, e a cidadã brasileira, Bruna Bianchi se casaram nos Estados Unidos, e mais especificamente na cidade de Nova Jérsei, tiveram um filho, Sean Goldman, nascido em 25 de maio do ano de 2000.
Em 2004, Bruna, que possuía família no Estado do Rio de Janeiro, trouxe o filho para o Brasil apenas com a autorização temporária do pai, sob o pretexto de que permaneceria no Brasil apenas durante as férias escolares do filho.
Porém, findo o prazo da autorização concedida por David, Bruna reteve Sean em território brasileiro ilicitamente.
David Goldman, então, rapidamente acionou a Justiça norte-americana visando o retorno do filho aos Estados Unidos. A Corte Estadual de Nova Jérsei determinou que Bruna comparecesse em Juízo para prestar informações sobre os motivos de impedir que David exercesse a guarda da criança, caso contrário, estaria configurado caso de sequestro internacional de criança nos termos da Convenção de Haia de 1980. A despeito da decisão,
Bruna permaneceu com o filho no Brasil.
Inconformado, David ingressou com ação de busca, apreensão e restituição do menor perante a Justiça Estadual do Rio de Janeiro, obtendo decisão desfavorável. Houveram dois principais argumentos utilizados para embasar a Sentença: o longo lapso temporal entre a transferência da criança ao Brasil e o julgamento da ação teria ensejado a adaptação da criança no novo país em que se encontrava, e que o retorno da criança aos Estados Unidos poderia ocasionar graves danos psíquicos ao menino.
Percebe-se que tais fundamentos estão presentes no art. 12 da Convenção de Haia como exceções ao retorno do menor ao seu país de residência habitual.
Paralelamente à ação de busca, apreensão e restituição ajuizadas por David Goldman, Bruna Bianchi pleiteou, também perante a Justiça Estadual do Rio de Janeiro, o direito de guarda exclusiva do filho e divórcio unilateral do marido, obtendo decisão favorável em ambos os pleitos.
Pouco tempo depois, Bruna contraiu novo matrimônio com um brasileiro e faleceu ao dar à luz à filha mais nova, o que levou o padrasto de Sean, a propor ação de reconhecimento de paternidade sócio afetiva cumulada com posse e guarda afim de continuar a exercer a guarda da criança em território brasileiro.
Em virtude das tentativas malsucedidas de retorno do filho, David Goldman acionou o governo americano para que adotasse as medidas cabíveis para viabilizar o retorno do filho aos Estados Unidos.
A Autoridade Central norte americana, então, efetuou pedido de cooperação internacional à Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República brasileira.
Neste contexto, em virtude do interesse da União, a Advocacia Geral da União (AGU), moveu ação de restituição obrigatória e imediata da criança nos termos da Convenção de Haia em face do padrasto de Sean Goldman, João Paulo Bagueira Leal Lins e Silva, perante a Justiça Federal.
Diante dos fatos, em razão do ajuizamento de duas ações paralelas, uma em tramite perante a Justiça Federal, e outra em tramite perante a Vara de família da Justiça Estadual do Rio de Janeiro, foi suscitado conflito de competência e encaminhados os autos ao Superior Tribunal de Justiça.
Nas palavras de Tibúrcio e Calmon (2014, p. 317), a respeito da decisão proferida pelo STJ:
“O Superior Tribunal de Justiça decidiu pela existência de conexão entre as duas ações, quais sejam: busca, apreensão e restituição, em curso na Justiça Federal, e a ação de reconhecimento de paternidade socioafetiva cumulada com posse e guarda, proposta na Justiça estadual. Considerou que ambas as ações tinham como objeto comum a guarda da criança, o que impunha a reunião dos processos para julgamento conjunto (…), a fim de se evitar decisões conflitantes e incompatíveis entre si. Em face da presença da União em ambos os feitos, na condição de autora (restituição) e assistente (guarda), decidiu o Superior Tribunal de Justiça ser a Justiça Federal Competente para o julgamento dos dois processos, nos termos do art. 109, I, da Constituição Federal. Considerou ainda que essa competência mais se reforçava pelo fato de que uma das demandas cuidada do cumprimento de obrigação fundada em tratado internacional (artigo 109, III, da Constituição Federal).”
A promulgação da Lei Sean e David Goldman
O caso Sean Goldman demonstrou que o descumprimento de uma Convenção firmada perante a comunidade internacional pode gerar consequências que vão além da esfera jurisdicional, ocasionando relações diplomáticas e políticas estremecidas entre os Estados envolvidos.
Foi o que ocorreu entre Brasil e Estados Unidos.
Necessária se fez a intervenção e reunião entre o então presidente da República do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, o Presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, e da Secretária de Estado norte americano, à época, Hillary Clinton, para que se chegasse a um entendimento comum, na tentativa de viabilizar o retorno imediato da criança aos Estados Unidos, a fim de dar cabo à uma disputa judicial traumática, longa e conturbada.
No dia 08 de agosto de 2014, os protagonistas deste caso ganharam nome de Lei.
Foi sancionada pelo presidente dos Estados Unidos da América, Barack Obama, a Lei Sean e David Goldman, que prevê a retaliação, pelo Estado americano, a países que descumprirem a aplicação da Convenção de Haia sobre aspectos civis do sequestro internacional de crianças.
A lei atribui ao Estado Americano poderes para exercer pressões diplomáticas, como como por exemplo, aplicar a reciprocidade na não devolução das crianças que tenham sido transferidas ou retidas ilicitamente aos Estados Unidos, bem como reduzir a quantidade de vistos para países que se apresentem em desconformidade da aplicação da Convenção, a fim de mobilizar as autoridades internacionais a entenderem a necessidade de urgência e solução da situação do menor abduzido, em respeito ao princípio do melhor interesse da criança, conforme trecho traduzido11 da referida lei:
Seção 202: Ações da secretaria de Estado em resposta a padrões de descumprimento nos casos de abdução internacional de crianças.
Resposta a um padrão de descumprimento é a política dos Estados Unidos:
(1) a opor falhas sistêmicas institucionais de governos estrangeiros para que descumpram com as suas obrigações nos termos da Convenção de Haia ou de procedimentos bilaterais, conforme o caso, para resolver casos de abdução e acessar casos;
(2) promover a reciprocidade de acordo com, e em conformidade com a Convenção de Haia ou de procedimentos bilaterais, conforme o caso; e
(3) para se envolver diretamente com funcionários de governos estrangeiros de alto nível para tratar de forma mais eficaz os padrões de descumprimento
A promulgação da lei foi uma das soluções encontradas pelos Estados Unidos em reforçar a aplicação da Convenção, e fazer com que os demais estados signatários de fato se responsabilizem pelo compromisso internacional ratificado perante a comunidade internacional.
Analisado o caso Sean Goldman e o seu desdobramento para o judiciário brasileiro, é necessário indicar que a partir da grande repercussão que ganhou a referida batalha judicial, houve uma evolução no entendimento do STJ a respeito do conflito de competência entre a Justiça Estadual e Federal.
O Tribunal se adequou ao entendimento doutrinário, bem como ao do grupo de estudos do Supremo Tribunal Federal, como analisado anteriormente, ao julgar o conflito de competência nº 132.100/BA, ocasião que negou haver conflito de competência entre a justiça estadual e federal, finalmente recomendando a suspensão do processo na esfera da Justiça Estadual, enquanto a questão prejudicial externa fosse julgada pela Justiça Federal, conforme o art. 16 da Convenção.
Cumpre observar que aqui estamos tratando de um tema interno ao Brasil acerca da competencia (capacidade) de julgar casos de sequestros internacionais de menores, porém nada mudou no tocante do entendimento da Justiça Brasileira ser competente para julgar casos desta natureza e não qualquer outra Corte ou Tribunal estrangeiro, sendo que ditos processos ainda enfrentarão a conhecida morosidade do Judiciário Brasileiro, o que muitas vezes permite que a criança abduzida acabe por estabelecer raízes sócio-afetivas com o Brasil muito mais significativas do que no país de que foi abduzida, inviabilizando o seu retorno.
Dr. Maurício Ejchel
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